A linguagem dos marginalizados: literatura Brasil/Angola

A linguagem dos marginalizados nos contos de João Antonio
e Luandino Vieira

                                                            
Fátima Pereira
Brasil e Angola têm em comum, além da
língua, afinidades etnoraciais, sociais, culturais e conexões históricas. No
início do século XX, o Brasil, nação livre e independente, se despontava como
uma importante força econômica e política, com uma sociedade racial e
socialmente híbrida, despertando o interesse das colônias portuguesas na
África.  Para aqueles que desejavam uma
ruptura com a metrópole, o Brasil era fonte de inspiração, e nesse aspecto a
literatura é de fundamental importância. Escritores brasileiros, principalmente
os regionalistas, eram lidos e admirados pelos jovens intelectuais angolanos. A
questão da identidade, levantada  pelos
modernistas brasileiros, é  uma questão
importante para a vanguarda de escritores angolanos, sendo assim,  diálogo no campo literário também foi
estendido ao campo político.Muitos escritores angolanos falam da influencia de
escritores brasileiros: Luandino declara a relevância da obra de João
Guimarães Rosa na sua trajetória de escritor
(CHAVES: 1999).

Nos anos 60,  os escritores acham a sua maior expressão no
meio urbano e suburbano. As cidades crescem. Todos os dias chegam pessoas do
interior em busca de melhores condições de vida, iludidos pelo progresso das
grandes cidades. A maioria viverá à margem da sociedade, ocupando bairros
proletários, musseques ou favelas,  fora
do perímetro de urbanização. A busca pela sobrevivência não é uma tarefa fácil.
No jogo da vida, a malandragem e a esperteza é vital para continuar jogando.
Luanda ou São Paulo, cenários diferentes com histórias parecidas: a busca da
sobrevivência em uma realidade adversa, com sua linguagem própria.

Estória do  ladrão e papagaio, do escritor angolano José Luandino
Vieira, e Malagueta, Perus e Bacanaço, do escritor brasileiro João
Antonio, têm muito em comum, a começar pelas personagens marginalizadas,
buscando um modo de sobreviver em meio ao desalento de cidade grande e um
discurso narrativo utilizando uma linguagem mesclada.

Malagueta, Perus e Bacanaço, primeiro texto publicado de João
Antonio foi publicado em 1963,  narra a 
aventura de três malandros em suas andanças pela madrugada paulista. A
cidade serve de pano de fundo e é um personagem que interage com o destino das
personagens. Perus é um rapaz romântico, dezenove anos, engraxate, morava com a
tia em Perus, daí o apelido; Bacanaço, um homem de meia-idade, jogador maduro e
ladino, cínico, um verdadeiro profissional da malandragem, admirado pelo rapaz,
pois mundo da malandragem, impressiona quem manda mais; Malagueta, um velho já
descrente da vida, um pé-de-chinelo. O modo de vida que escolheram é a sinuca.
Unidos na mesma miséria, que é a miséria de não possuírem dinheiro, mas é
também a do jogo. E como viradores, juntos, viram-se com as armas que possuem.
O autor conhece bem essa realidade, como deixa claro no prefácio do livro.

 
A construção da narrativa é feita de modo cada parte seja independente:
a subdivisão interna da narrativa percorre os bairros paulistanos
: Lapa, Água Branca, Barra Funda,
Cidade, Pinheiros, Lapa. Cada subdivisão constitui uma unidade fechada. A
continuidade da narrativa é uma espécie de colagem. São as personagens que dão
unidade à narrativa.  Os três
malandros  percorrem os muquinfos,
botecos fecha-nunca, salões de sinuca, lugares freqüentados por
malandros e prostitutas. Virariam a cidade tentando arranjar dinheiro. Tentam a
sorte no jogo, ou melhor, tentam ganhar dinheiro de otários. É a luta pela
sobrevivência. Afinal eles não, têm a vida ganha como os bacanas,
aqueles da classe média, bem arrumados e alimentados. Os malandros, os merdunchos,
como o autor os denomina, vivem sempre na situação de risco e têm uma lutam
arduamente para sobreviver, embora tentem ganhar dinheiro “na moleza”.

A descrição é uma técnica bastante
usada pelo autor, como exemplifica esse trecho:

A rua suja e pequena. Para os lados do
mercado e à beira dos trilhos do trem – porteira fechada, profusão de barulhos,
confusão, gente. Bondes ramgiam nos trilhos, catando ou depositando gente
empurrada e empurrando-se no ponto inicial. Fechado o sinal da porteira,
continua fechado. É pressa, as buzinas comenm o ar com precipitação, exigem
passagem. Pressa, que gente deixou os trbalhos, homens de gravata ou homens de
fábricas. Bicicleta, motoneta, caminhão, apertando-se na rua. Para a cidade ou
para as vilas, gente que vem ou que vai.

A narração em terceira pessoa adere ao
personagem, mostrando o mundo que a personagem vê. O narrador concentra-se no
mundo interior da personagem, com a qual se identifica, empregando o estilo
indireto livre. Assim, narrador e personagem se confundem.

Outra característica desse conto é a
presença da oralidade. João Antonio é o mestre da palavra, misturando a gíria,
linguagem típica dos malandros, com seus jeitos e  códigos com o português-padrão, produz um
texto com um ritmo, a sonoridade produzindo 
a linguagem oral.

Ao ler Malagueta, Perus e Bacanaço,
é preciso lembrar que os tempos eram outros. A malandragem era diferente do que
conhecemos hoje, menos violenta e talvez fosse  até romântica. João Antonio apresenta os
desassistidos, os excluídos, os que vivem à margem da sociedade
capitalista.  O conto não deixa de ser uma
crítica social:

Eram
três vagabundos, viradores, sem eira, nem beira. Sofredores. Se gramassem atrás
de dinheiro, indo e vindo e rebolando, se enfrentassem o fogo do joguinho, se
evoluíssem malandragens, se encarassem a polícia e a abastecessem,  se atilassem teriam o de comer e o de vestir
no dia seguinte; se dessem azar, se tropicassem nas virações, ninguém lhes
daria a mínima colher de chá – curtissem sono e fome e cadeia.

Os três malandros percorrem o trajeto
comprido da noite e da madrugada, jogando, ganhando, perdendo. Terminam murchos,
sonados, pedindo três cafés fiados.

Em Estória do
ladrão e papagaio
, DosReis é preso com um saco cheio de patos. Na prisão,
entrega Garrido, que é preso por roubar o papagaio Jacó. Mas é na fala de Xico
Futa que se desenvolve a ação discursiva do conto. É a figura do cajueiro. A
árvore  – símbolo universal de unidade,
regeneração, auto-realização e crescimento orgânico –  é uma árvore de importância nacional, símbolo
da MPLA (Movimento pela Libertação de Angola), que indica a resistência, ainda
que no meio da destruição.

Xico Futa termina seu
ensinamento:

…É
assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não podem fugir  sempre para trás, derrubando os cajueiros
todos; nem correr  sempre muito já na
frente, fazendo nascer  mais paus de
cajus. É preciso dizer um princípio se escolhe: costuma se começar, para ser
mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das
conversas.

Tudo isso para o narrador falar da
raiz da prisão de Garrido – o papagaio Jacó.

Nessa narrativa, mais importante do
que o enredo é a forma. A voz narrativa é em uma linguagem que foge aos
padrões, embora em língua portuguesa, a linguagem simula a fala dos moradores
dos musseques, o pequeno português ou o pretoguês, como se diz  popularmente.

Na obra de Luandino
Vieira, Luanda é quase uma personagem. O espaço das estórias é o dos musseques,
bairros periféricos, sem infra-estrutura, onde vivem aqueles à margem da
sociedade, os desfavorecidos e discriminados. Filho de colonos humildes,
Luandino foi criado em bairros populares, convivendo e participando da vida dos
musseques e da zona suburbana. Apesar de ser português, Luandino Vieira é um
dos maiores expoentes da literatura angolana. Ativista político, foi membro do
MPLA e  esteve  preso 
por atividades anticolonialistas. Seu livro de contos de 1964, Luuanda
(ortografia arcaica), foi escrito na prisão. Livro premiado, é um novo
marco na  literatura angolana, numa época
de perseguição política.

 Nessa estória, assim como nas outras
duas de Luuanda (o autor prefere chamar de estórias, em vez de
contos, fazendo uma alusão a Guimarães Rosa), retrata o bilingüismo da capital
Luanda, onde o português, língua oficial, convive com o quimbundo, a
língua do cotidiano. A mensagem de Luandino ultrapassa os limites geográficos e
lingüísticos. Ao terminar a estória deixando o leitor julgar se a estória é
bonita ou feia, faz com esse leitor decida se os casos fazem parte de algo
maior, ajustando o regional e bairrista (musseque, Luanda) ao nacional
(Angola).

Considerações finais

João Antonio e
Luandino Vieira rompem com o modelo ideológico quanto ao padrão lingüístico do
português.
 A nova linguagem se faz necessária para dar sentido a uma
nova forma de ver o mundo, de quem o vê de baixo para cima seja a  linguagem dos malandros se arrastando na
noite de São Paulo, ou dos moradores dos musseques luandenses, que sugere que
há um texto em quimbundo, que não entendemos, mas que faz parte do discurso.                

Bibliografia:

ANTONIO, João. Malagueta, Perus e
Bacanaços
. Rio de Janeiro: Record, 1970

CHAVES, Rita. “Imagens da utopia: o
Brasil e as literaturas africanas de língua portuguesa”.
In
Ipotesi, n. 4.
Revista da
Universidade Federal de Juiz de Fora, 1999.

LEÃO, Ângela Vaz. (org.) Contatos e
ressonâncias – Literaturas Africanas de Língua Portuguesa
. Belo Horizonte:
Puc-MG, 2003

LUANDINO VIEIRA, José. Luuanda –
estórias
. 6a. ed. Lisboa: Edições 70, s/d

SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias
africanas: história e antologia
.São Paulo: Ática, 1985.

SCHUARZ, Roberto. (org.) Os pobres
na literatura brasileira
. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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