que, no fundo do sertão de Goiás, numa localidade de cujo nome não estou certo,
mas acho que é Porangatu, que fica perto do rio de Ouro e da serra de Santa
Luzia, ao sul da Serra Azul – mas também pode ser Uruaçu, junto do rio das
almas e da serra do Passa Três (minha memória é traiçoeira e fraca; eu esqueço
os nomes das vilas e a fisionomia dos irmãos, esqueço os mandamentos e as
cartas e até a amada que amei com paixão) -, mas me contaram que em Goiás,
nessa povoação de poucas almas, as casas são pobres e os homens pobres, e
muitos são parados e doentes indolentes, e mesmo a igreja é pequena, me
contaram que ali tem – coisa bela e espantosa – um grande sino de ouro.
Lembrança de antigo esplendor,
gesto de gratidão, dádiva ao Senhor de um grã-senhor – nem Chartres, nem
colônia, nem S. Pedro ou Ruão, nenhuma catedral imensa com seus enormes
carrilhões tem nada capaz de um som tão lindo e puro como esse sino de ouro, de
ouro catado e fundido na própria terra goiana nos tempos de antigamente.É
apenas um sino, mas é de ouro. De tarde seu som vai voando em ondas mansas sobre
as matas e os cerrados, e as veredas de buritis, e a melancolia do chapadão, e
chega ao distante e deserto carrascal, e avança em ondas mansas sobre os campos
imensos, o som do sino de ouro. E a cada um daqueles homens pobres ele dá cada
dia sua ração de alegria. Eles sabem que de todos os ruídos e sons que fogem do
mundo em procura de Deus – gemidos, gritos, blasfêmias, batuques, sinos,
orações, e o murmúrio temeroso e agônico das grandes cidades que esperam a
explosão atômica e no seu próprio ventre negro parecem conter o germe de todas
as explosões – eles sabem que Deus, com especial delícia e alegria, ouve o som
alegre do sino de ouro perdido no fundo do sertão. E então é como se cada
homem, o mais mesquinho e triste, tivesse dentro da alma um pequeno sino de
ouro.
Quando vem o forasteiro de
olhar aceso de ambição, e propõe negócios, fala em estradas, bancos, dinheiro,
obras, progresso, corrupção – dizem que esses goianos olham o forasteiro com um
olhar lento e indefinível sorriso e guardam um modesto silêncio. O forasteiro
de voz alta e fácil não compreende; fica, diante daquele silêncio, sem saber
que o goiano está quieto, ouvindo bater dentro de si, com um som de extrema
pureza e alegria, seu particular sino de ouro. E o forasteiro parte, e a povoação
continua pequena, humilde e mansa, mas louvando a Deus com sino de ouro. Ouro
que não serve para perverter, nem o homem nem a mulher, mas para louvar a Deus.
O ouro do sino de ouro é neste mundo o único ouro de alma pura, o ouro no ar, o
ouro da alegria. Não sei se isso acontece em Porangatu, Uruaçu ou outra cidade
do sertão. Mas quem me contou foi um homem velho que esteve lá; contou dizendo:
“eles têm um sino de ouro e acham que vivem disso, não se importam com
mais nada, nem querem mais trabalhar; fazem apenas o essencial para comer e
continuar a viver, pois acham maravilhoso ter um sino de ouro”.
espanto e desprezo. Mas eu contei a uma criança e nos seus olhos se lia seu
pensamento: que a coisa mais bonita do mundo deve ser ouvir um sino de ouro.
Com certeza é esta mesmo a opinião de Deus, pois ainda que Deus não exista, ele
só pode ter a mesma opinião de uma criança. Pois cada um de nós quando criança
tem dentro seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e
corrupção, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra, e lama e
podridão.
Rubem. COLEÇÃO MELHORES CRÔNICAS
prefácio: Carlos Ribeiro.São
Paulo: Editora Global, 2013.
texto, responda:
narrador, essa história que ele conta é baseada em:
feito por um forasteiro que visitou a cidade e quis negociar o sino de ouro.
sino de ouro.
trecho “ […] numa localidade de cujo nome não estou certo , mas acho que é Porangatu […] mas também pode ser
Uruaçu […]” Por que a precisão geográfica parece não importar
ao narrador?
moradores e a povoação cuja igreja tem um sino de ouro?
olham o forasteiro ambicioso que chega a sua cidade?
representa o ouro para:
o forasteiro?
os moradores do povoado?
relação à história do sino de ouro, que atitude tem:
o homem velho que contou a história?
a criança que ouviu a história contada pelo narrador?
O narrador termina a história afirmando que cada um nós quando criança tem dentro seu sino de ouro que depois
se degrada. O que simboliza esse sino?
Segundo o cronista, o que faz mudar o modo como vemos as coisas?
homens pobres ele dá cada dia sua ração de alegria.” Mostra que as pessoas
daquele povoado:
São exibidas pois só elas têm um sino de ouro.
ouro do sino, mas no ouro do coração.
são pobres.
como a explosão da bomba atômica que mora dentro deles.
dentro de sua alma seu sino de ouro que, depois, por nossa culpa e miséria e
pecado e corrupção, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra, e
lama, e podridão.”